domingo, 2 de outubro de 2011

Carne de vinha-d'alhos

Pois é, nem só de paninhos vive este blog! Filha de portuguesa, neta de sitiante, parece inevitável que vez ou outra o assunto recaia sobre comida! Desta vez, como era ainda uma quase experiência, sem convidados.

Minha mãe, já falei aqui, era da Ilha da Madeira, a pérola portuguesa do Atlântico. Seu cunhado Antonio, aliás, adorava deixá-la irritada dizendo que elas eram africanas, fato explicado pelo posicionamento da Ilha, muito mais próxima de Essaouira e Casablanca, na África, do que de Lisboa. Já tive o imenso prazer de visitar a Ilha três vezes e estou me naturalizando portuguesa para poder ter o prazer de dizer que sou Madeirense, tamanho é o encanto que a Ilha me proporciona!

Além dos maravilhosos bordados, a Ilha tem uma culinária própria, muito distinta do restante de Portugal. São de lá o Bolo Preto, o Bolo Família, o Bolo de Mel da Madeira (este, para quem quiser experimentar, encontra-se à venda no Empório Santa Luzia, nos jardins; eventualmente eu também o faço no início de dezembro), as espetadas (nosso espetinho), o milho frito (polenta branca com couve picada muito fininha) e a Carne de Vinha-d'alhos.

Tentei elaborar este prato uma vez depois de casada, mas a inexperiência com as panelas não ajudou muito. Lembro da última vez que o comi, muitíssimo bem feito, na casa do Abel, primo de minha mãe que morava em Ontário, no Canadá. Passei um Natal e Ano Novo maravilhosos em sua casa, há mais de 20 anos; meu primeiro White Christmas! E como o frio que faz naquelas terras não permite que se tenha comida fresca o ano inteiro, sua esposa costumava fazer diversas compotas de frutas e picles para o ano inteiro; este estoque incluía a Carne de Vinha-d'alhos.

Em janeiro levamos as crianças pela primeira vez a Portugal, com escala na Ilha, é claro. Eles amaram de paixão, comeram peixe-espada preto - outra iguaria típica e deliciosa - entre outras coisas, mas não tivemos a oportunidade de comer a tal carne. E a pouco tempo atrás, senti que devia isto a eles; quando se é pequeno, antepassados e história são assuntos que não nos interessam, pois a perspectiva de tempo é diferente daquela dos adultos, ausência e morte são coisas distantes. Mas quando crescemos nos damos conta que são os sabores, aromas e histórias de nossos ancestrais que ajudaram a construir, entre outras coisas, o nosso caráter.

E lá fui eu resgatar o livro e preparar a carne. Este não é um prato que se resolve fazer da noite para o dia. Ele necessita de pelos menos dois dias de "molho" para ficar saboroso. Para os curiosos, segue a receita retirada do livro "Cozinha Tradicional Portuguesa", de Maria de Lourdes Modesto. Aliás, comprei este livro em Lisboa a primeira vez que lá estive, no século passado! Não sei onde estava com a cabeça, pois ele pesa um bocado! Atentem para o português!


Carne de Vinha-d-a'lhos
Para 4 pessoas
600g de lombo de porco (bastante gordo); 8 fatias de pão; 600g de batatinhas novas
Para a vinha-d-a'lhos: 2 dl de vinho branco; 1 dl de vinagre; sal grosso; 6 dentes de alho picados; 1 folha de louro; pimenta ou 1 malagueta


Lava-se o lombo em água quente, escorre-se e corta-se em bocados pequenos. Prepara-se a marinada misturando os ingredientes num recipiente de barro e introduz-se a carne de porco, que deve ficar bem coberta pela vinha-d-a'lhos. Deixa-se marinar durante pelo menos 3 dias.
Depois, leva-se a carne a cozer na própria vinha-d'alhos e, enquanto a carne coze, embebem-se no molho a ferver algumas fatias de pão grossas, que não devem, contudo, ficar completamente ensopadas. Vão-se colocando estas fatias numa travessa. Quando a carne estiver cozida sem ser em demasia, escorre-se e deixa-se arrefecer completamente o molho. 
Retira-se a gordura que se forma à superfície do molho e, com esta gordura, fritam-se a carne e as fatias de pão numa frigideira e sobre lume vivo. Se a gordura não for suficiente, adiciona-se um pouco de banha.
Entretanto, cozem-se as batatinhas novas e rodelas grossas de batata-doce, que depois se alouram na gordura de fritar a carne. A carne de vinha-d'alhos é servida bem quente com rodelas de limão e de laranja. Acompanha-se com as batatinhas e as rodelas de batata-doce alouradas, milho frito à moda da Madeira e cebolinhas de escabeche.


E no final da receita, segue a explicação de quando se come esta carne e sua importância para os madeirenses:

A carne de vinha-d'alhos é sem dúvida o prato mais característico da Ilha da Madeira e é usado especialmente para a Festa (como lá se designa o Natal). Pode-se afirmar, sem receio de errar, que o pobre mais pobre da Ilha não passa a Festa, que inclui o Dia de Natal e os dois dias seguintes, 1ª e 2ª Oitavas, sem ter pelo menos provado uns pedacinhos da cheirosa "carne de vinha-d'alhos", que nestes dias rescende pelas ruas.

Fiz algumas adaptações: a carne não era "gorda", portanto não havia gordura no caldo depois de frio; apenas cozi as batatas e não as fritei e como já tinha carboidrato demais, pulei a batata-doce e o milho frito. Bom, escrevi, escrevi, mas faltou mostrar, não é mesmo? Pois vejam lá pelos seus próprios olhos o que acham disto:

Como já tinha muita fritura, servi as batatas apenas cozidas, com azeite Herdade do Esporão, o favorito do Guilherme

O vinho escolhido pelo Sergio para acompanhar o prato. Um belíssimo Chileno!
Todos comeram até se fartar. Para os adultos durante os próximos 5 dias, apenas ar e água!

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